Bonacic C  (2012)  Ecologia e Manejo da Vicunha.  ECOLOGIA.INFO 27

Ecologia e Manejo da Vicunha

Cristián Bonacic
Fauna Australis
Facultad de Agronomía e Ingeniería Forestal
Pontificia Universidad Católica de Chile
Santiago, Chile

Nota. Esse artigo online é continuamente atualizado e revisado logo que resultados de novas pesquisas científicas tornam-se disponíveis. Portanto, apresenta as últimas informações sobre os tópicos abordados.

A vicunha (Vicugna vicugna) é o menor membro vivo da família dos camelos (Camelidae). Habita de 3.000 a 4.600 metros acima do nível do mar, no elevado platô andino na região central e sul do Peru, oeste da Bolívia, norte do Chile e noroeste da Argentina, especificamente na puna, uma estepe elevada, desértica e desprovida de árvores, localizada acima da zona de lavouras cultivadas.

A vicunha está bem adaptada à vida nesse ambiente inóspito. Sua pelagem é constituída da lã da melhor qualidade que se conhece, a qual é valorizada e utilizada pelo homem desde a era pré-colombiana. Esta lã a protege do extremo frio e dos fortes ventos da puna e serve como um acolchoado para o corpo quando descansa no chão. Em comparação com os camelos do velho mundo, a vicunha possui cascos mais profundamente bipartidos, permitindo que caminhe e corra com mais aptidão em encostas rochosas, penhascos e pedras soltas, comuns na puna (Koford, 1957).

Outra importante adaptação são os dentes semelhantes aos de roedores, os quais crescem continuamente e permitem que a vicunha “se alimente de pequenos arbustos herbáceos e gramíneas perenes rentes ao solo” (Franklin, 1983; Renaudeau D'Arc et al., 2000)." A vicunha é o "único ungulado que possui incisivos de raiz aberta e crescimento contínuo" (Miller, 1924; Franklin, 1983; Renaudeau D'Arc et al., 2000).

A vicunha apresenta semelhanças interessantes com o antílope (Antilocapra americana) da América do Norte (Koford, 1957). Embora não tenham parentesco, esses dois habitantes de campos castigados pelo vento apresentam tamanho semelhante e são muito rápidos, capazes de correr a velocidades incríveis para escapar do perigo. Ambos os animais são inquisitivos, caminhando “em direção a qualquer objeto em movimento que esteja parcialmente escondido, como que para identificá-lo com uma inspeção mais próxima” (Koford, 1957).

A vicunha é um dos quatro representantes vivos da família dos camelos encontrados na América do Sul, sendo os outros três o guanaco (Lama guanicoe), a lhama (Lama glama) e a alpaca (Vicugna pacos). Figura 1, Figura 2. A vicunha e o guanaco são espécies selvagens, enquanto a lhama e a alpaca são domesticadas. Neste artigo, são discutidas a ecologia e o manejo da vicunha.

Distribuição geográfica e raças

A vicunha atualmente habita os elevados Andes, entre as latitudes 9o 30' sul e 29o 00' sul. Contudo, no passado seu raio se estendia muito mais ao norte. Por exemplo, no século XVI, Cieza de Leon ([1550] 1984) citou a presença de vicunhas habitando as proximidades de Huamachuco, no Peru, e as regiões do Loja e do Riobamba, no Equador.

Há milhares de anos, no Pleistoceno Superior e Holoceno Inferior, as vicunhas encontravam-se mais a sul do que estão hoje, em toda a porção sul da América do Sul (Weinstock et al. 2009).

Duas subespécies geográficas da vicunha são reconhecidas: uma raça sulina, a Vicugna vicugna vicugna, e uma raça do norte, a Vicugna vicugna mensalis (Torres, 1992; Palma et al., 2001; Marin et al. 2007). A linha divisória aproximada entre essas duas raças é 18o de latitude sul. Entretanto, o limite exato não foi traçado e a recente e rápida recuperação populacional dificulta a elucidação da distribuição das duas subespécies no passado. A raça do sul é maior e mais clara do que a do norte.

Relação com Camelídeos Domésticos

Por muitos anos, a origem dos camelídeos domésticos sul-americanos, a lhama e a alpaca, não era clara devido à “hibridização, à quase extinção durante a conquista espanhola e às dificuldades de interpretação arqueológica” (Kadwell et al., 2001)."

Por muito tempo os biólogos presumiram que a alpaca e a lhama descendiam do guanaco e que a vicunha nunca havia sido domesticada. Entretanto, uma recente pesquisa genética sugere que a lhama é de fato descendente do guanaco, e a alpaca, da vicunha (Kadwell et al., 2001; Marin et al. 2007). Atualmente, estima-se que a domesticação da alpaca tenha ocorrido "6.000 ou 7.000 anos atrás nos Andes peruanos” (Kadwell et al., 2001).

Os estudos genéticos também demonstram que a raça do norte da vicunha, a V. v. mensalis, relaciona-se mais proximamente à alpaca, enquanto a vicunha do sul, a V. v. vicugna, aproxima-se mais a um táxon basal (isto é, um camelídeo sul-americano primitivo) (Kadwell et al., 2001).

Alimentação

A vicunha alimenta-se principalmente de gramíneas, mas também inclui arbustos, forrageiras anuais e graminóides em sua dieta (Mosca Torres et al. 2010; Borgnia et al 2010).

Organização social

A vicunha é um animal social e ocorre tipicamente em grupos. Indivíduos solitários são raros. Há dois tipos de grupos: (1) grupos familiares e (2) bandos de machos.

Um grupo familiar é criado por um macho dominante que estabelece e conserva um território permanente durante todo o ano (Macdonald, 1985), o tamanho do qual varia conforme a qualidade da pastagem e de outros recursos (Franklin, 1983). Um grupo familiar é composto deste macho dominante, várias fêmeas adultas, fêmeas jovens (um ano de idade ou mais) e a prole de ambos os sexos com menos de um ano de vida (Franklin, 1982; Wilson, 1975; Bonacic et al., 2002).

Um bando de machos é composto de machos jovens (de um a quatro anos de idade) que foram expulsos de seus grupos familiares, além de machos mais velhos que perderam seus territórios. Diferentemente dos grupos familiares, os bandos de machos não delimitam territórios e parecem não ter líderes (Koford, 1957). Eles constituem uma categoria temporariamente não-reprodutora (Franklin, 1983). Os bandos de machos também são chamados de “grupos dos solteirões”.

As vicunhas solitárias são machos adultos solteiros sem território ou com território, porém sem fêmeas. Alguns são antigos líderes que foram destituídos de seus territórios por novos machos. Vicunhas solitárias constituem outra unidade não reprodutora (Glade e Cattan, 1987).

Pelo fato de as vicunhas macho e fêmea terem uma aparência tão semelhante, às vezes é difícil dizer se um bando de vicunhas é um grupo familiar ou um bando de machos. Entretanto, durante o outono, o inverno e o início da primavera, pode-se reconhecer os bandos familiares pelos filhotes com menos de um ano de idade (Koford, 1957).

Pilhas de Esterco Comunitárias

As vicunhas e outros camelídeos sul-americanos defecam e urinam em pilhas de esterco comunitárias. Todos os indivíduos de um bando, seja um grupo familiar ou um bando de machos, utilizam as mesmas pilhas e "os bandos deslocados utilizam livremente as pilhas de esterco situadas nos territórios de outros bandos” (Koford, 1957). Mais notável ainda é o fato de que "as alpacas e as lhamas utilizam as mesmas pilhas de esterco que as vicunhas” (Koford, 1957).

Uma típica pilha de esterco comunitária possui “trinta centímetros de espessura no centro e quatro metros e meio de diâmetro" (Koford, 1957). Onde as vicunhas são comuns e o terreno é plano, essas pilhas têm espaçamentos regulares de cerca de quarenta e cinco metros (Koford, 1957).

Uma importante pergunta ecológica que precisa ser respondida é: “que efeito essas pilhas de esterco têm sobre o crescimento, a distribuição e a abundância das várias plantas e animais da puna?”. Segundo Koford (1957), “a maioria das plantas que crescem em cima ou próximas dessas pilhas são conspicuamente diferentes das plantas do pasto circunjacente” e “no final da estação das chuvas, pontos circulares verdes e brilhantes marcam o local das pilhas de esterco e, em muitas encostas áridas, esses pontos são a única vegetação que se pode ver à distância”.

Predadores

Em áreas habitadas pelo homem, cães domésticos das aldeias locais matam as vicunhas mais freqüentemente do que qualquer outro predador não humano (Koford, 1957). Entretanto, também existem carnívoros autóctones que atacam as vicunhas, entre eles, o puma (Puma concolor) e a raposa andina (Pseudalopex culpaeus) (Cajal e Lopez, 1987). Esta última espécie tem sido chamada de “equivalente ecológico” do coiote (Canis latrans) da América do Norte (Koford, 1957).

Como o antílope da América do Norte, as vicunhas recém-nascidas conseguem escapar dos predadores logo após o nascimento. Por exemplo, um filhote de vicunha observado por Koford (1957) levantou a cabeça e o pescoço 20 minutos após o nascimento e caminhou cem metros por uma moderada encosta rochosa, acompanhando a mãe, uma hora depois de nascido. Após três horas do nascimento, ele foi visto correndo 200 metros por uma encosta rochosa a uma velocidade de 24 quilômetros por hora com sua mãe.

Uma vicunha recém-nascida é, portanto, mais vulnerável a predadores durante a primeira hora de vida. Koford (1957) observou uma vicunha dando à luz e constatou que um minuto após o filhote ter caído no chão, cinco condores-dos-andes adultos (Vultur gryphus) pousaram a nove metros encosta acima do recém-nascido. Em vinte minutos, mais condores chegaram, aumentando o tamanho do grupo para quatorze animais. O comportamento defensivo da mãe, e de outras fêmeas prenhes do grupo familiar, impediu a aproximação dos condores a uma distância de dois metros do indefeso recém-nascido. Os condores foram embora em meia hora. Este pássaro não consegue atacar vicunhas vivas de outra forma, embora geralmente seja visto alimentando-se da carniça desses animais.

Seleção do Habitat

Embora a vicunha esteja restrita à puna, ela não ocupa todas as partes desse árido ecossistema. Nos Andes argentinos, não havia vicunhas no habitat mais comum da puna, o peladar, uma área ampla e aberta de “solo nu rochoso onde às vezes se encontram arbustos isolados de Acantholippia hastulata” (Renaudeau d'Arc et al., 2000).

Em contraste, as vicunhas preferiam pastar no habitat menos comum da puna, o bofedal, uma área pantanosa normalmente com menos de um hectare, “que apresenta águas subterrâneas, lagunas ou riachos”, as quais criam “condições edáficas localmente úmidas, onde gramíneas resistentes e ervas verdes, especialmente o Oxycholoe sp. e espécies rizomatosas, cobrem quase 100% do solo” (Renaudeau d'Arc et al., 2000)."

A preferência por bofedales também foi reportada por Glade (1987), Lucherini e Birochio (1997) e Lucherini et al. (2000). Veja foto colorida: Figura 3.

Na Reserva Laguna de los Pozuelos, na Argentina, as vicunhas preferiam habitats dominados por gramíneas altas (Parastrephia lepidophylla ou Festuca spp.) e também habitats com vegetação densa, como as áreas dentro e ao redor de banhados (Arzamendia et al. 2006).

Koford (1957) relatou que, embora os manguezais fizessem parte dos territórios da vicunha, elas geralmente ficavam próximas a encostas ascendentes. Ele observou que a vicunha escapa de alguns predadores ao correr para as encostas escarpadas, e que utiliza locais secos com “inclinações moderadas bastante abaixo dos cumes" para passar a noite. Outra vantagem é que as bases das encostas geralmente são bons locais para pastar porque o solo é mais profundo e úmido do que as áreas mais acima (Koford, 1957).

O uso do habitat varia conforme o horário do dia. Em muitas áreas dos Andes, as vicunhas passam a noite, o início da manhã e o final da tarde nas encostas. No final da manhã, elas descem para os bofedales, onde pastam extensivamente (Glade, 1987; Renaudeau d'Arc et al., 2000).

As vicunhas bebem água todos os dias e são geralmente encontradas num raio de dois quilômetros de um corpo d’água (Koford, 1957), que pode ser um lago, um riacho ou uma fonte, embora até mesmo uma poça ao lado de uma estrada ou num tapete de vegetação seja suficiente (Koford, 1957).

Numa parte dos Andes argentinos onde não havia colônias humanas permanentes, Lucherini et al. (2000) constataram que, durante um ano, quando os pumas invadiam seu local de estudo, os bandos de machos de vicunhas passavam menos tempo nos bofedales e em outras áreas verdes a 100 metros de um rio e aumentavam o tempo gasto em áreas com vegetações mais esparsas a meio quilômetro do rio. Esses pesquisadores acreditavam que o motivo da mudança do habitat era o medo dos pumas, que caçavam mais freqüentemente ao longo do rio, onde matavam mais vicunhas.

Padrões de Atividade

Durante o outono na Argentina, as vicunhas passam mais tempo em busca de alimento e menos tempo descansando do que no verão (Vila e Cassini, 1993). Em ambas as estações, as vicunhas bebem água durante todo o dia, com pico ao meio-dia (Vila e Cassini, 1993). Entretanto, as vicunhas bebem água mais freqüentemente à tarde no verão do que no outono (Vila e Cassini, 1993). Uma explicação para essas diferenças é que a temperatura ambiente e a umidade também são mais elevadas no verão do que no outono (Vila e Cassini, 1993).

No Chile, Glade (1987) observou que a estação de nascimento ocorreu entre a segunda semana de fevereiro e a última de março, com um número de 65 a 68 filhotes vivos por 100 nascimentos. Quatorze por cento dos filhotes morreram dentro de três meses e a mortalidade atingiu 17,6% até um ano de vida. Os animais sobreviventes eram rejeitados pelos grupos familiares quando tinham entre 6 e 12 meses e 54,5% do total de expulsões ocorreu em fevereiro. Glade também descreveu a proporção de gênero de 33 machos por 100 fêmeas em vicunhas adultas, e o tamanho médio do grupo familiar de 5,6 indivíduos (1 macho líder, 3 fêmeas e 1,6 filhotes).

Interações entre camelídeos

As vicunhas podem ser vistas se alimentando próximo a rebanhos domésticos de lhamas, de alpacas e até mesmo de ovelhas durante o dia, principalmente em campos ou bofedales. O pastoreio diário não requer muito esforço e os pastores tipicamente movimentam o rebanho doméstico dos currais para pastar nos campos ao redor do meio-dia. Esta proximidade da pastagem é comum no altiplano, ocorrendo pouca perturbação às vicunhas. Entretanto, a grande proximidade das vicunhas com os rebanhos domésticos facilita a transmissão de doenças interespecíficas. Além disso, às vezes as vicunhas são recolhidas aos currais juntamente com as lhamas e alpacas, e as vicunhas órfãs são criadas pelos fazendeiros.

As vicunhas podem ser forçadas a cruzar com alpacas, produzindo uma ascendência fértil chamada de "paco-vicunha", que possui uma fibra um pouco mais grossa e é menos mansa do que a alpaca.

Características Físicas

Fisicamente, a vicunha é o camelídeo mais particular da América do Sul. É menor do que a alpaca e um adulto pesa apenas 40 ou 50 quilogramas, medindo cerca de 1,5 m de altura (Macdonald, 1985). O comprimento total do corpo (da ponta do focinho até a base da cauda) varia de 1,1 a 1,9 metros (Paucar et al., 1984; Burton e Pearson, 1987).

A vicunha se distingue da alpaca, do guanaco e da lhama pelo menor tamanho, conformação mais esguia e coloração. A parte de cima é castanho-avermelhado-escuro, enquanto a barriga e a parte interna das coxas são brancas. Às vezes encontra-se alpacas com cor de vicunhas no rebanho doméstico, mas elas podem ser diferenciadas das vicunhas através da lã mais comprida e da conformação mais robusta. Pequenos guanacos (chulengos) podem se assemelhar em tamanho e comportamento às vicunhas jovens ou adultas, mas tipicamente têm faces escuras se comparadas às faces claras das vicunhas.

Censo Populacional

Os hábitos ecológicos da vicunha e a grande visibilidade da puna possibilitam o uso de técnicas de contagem total para se realizar o censo e estimar as populações (Cueto et al., 1985; Hoffmann et al., 1983). Essas estimativas foram um aspecto-chave dos programas que avaliam a eficácia das medidas anti-caça e de conservação das vicunhas. Censos anuais começaram a ser realizados no Peru em 1969 e, no Chile, em 1975. Recentes estimativas da população calculam 120.000 indivíduos no Peru, 30.000 na Bolívia, 25.000 no Chile e 23.000 na Argentina (Figura 2) (Galaz, 1998; Hoces, 1999; Rendon, 1998).

Continue a leitura desse artigo na Página 2.

Fotografia no topo da página: um grupo de vicunhas na puna peruana. No centro da foto se vê um bofedal (um pântano que constitui um rico habitat de pastagem para as vicunhas). Foto de Stuart Pattullo.

 

 

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