Engenheiros do Ecossistema:
Organismos que Criam, Modificam e Mantêm Habitats
Nota.
Esse artigo online é continuamente atualizado e revisado logo que resultados de
novas pesquisas científicas tornam-se disponíveis. Portanto, apresenta as últimas
informações sobre os tópicos abordados.
Os
ecologistas tradicionalmente explicam a distribuição e abundância de
organismos por fatores como interações tróficas (baseadas na alimentação),
competição e clima. Entretanto, atualmente tudo indica que outros fatores também
são importantes. Um deles é a “engenharia do ecossistema”, que ocorre
quando outros organismos (chamados “engenheiros do ecossistema”) criam,
modificam e mantêm habitats.
A
engenharia do ecossistema pode alterar a distribuição e a abundância de
grandes números de plantas e animais, e modificar a biodiversidade de maneira
significativa (Jones et al., 1994; 1997; Wright et al., 2002; Lill e Marquis,
2003). Os exemplos mais conhecidos de engenheiros do ecossistema são os seres
humanos (Homo sapiens). Entretanto, este trabalho irá focar-se em
engenheiros do ecossistema não-humanos e analisar as várias maneiras como eles
alteram a distribuição e abundância de outros organismos.
"Engenheiros
do Ecossistema" e "Engenharia do Ecossistema"
Os
engenheiros do ecossistema físico são organismos que criam, modificam ou mantêm
habitats (ou micro-habitats) ao causarem mudanças no estado físico de
materiais bióticos e abióticos que, direta ou indiretamente, modulam a
disponibilidade de recursos para outras espécies (Jones et al., 1994, 1997).
A
engenharia do ecossistema consiste na “criação, modificação e manutenção
de habitats [e micro-habitats] por organismos (Gutiérrez et al., 2003)."
A
engenharia do ecossistema parece ser muito comum no mundo natural (veja exemplos
abaixo). Pelo fato de a maioria dos organismos afetar o ambiente físico de
alguma forma, pode parecer insensato chamar a todos de "engenheiros do
ecossistema". Em vez disso, Reichman e Seablom (2002ab) propuseram
restringir o termo “engenheiros do ecossistema” a espécies-chave como o
castor e a lagarta que constrói abrigos, que afetam intensamente outros
organismos. Por outro lado, o termo “engenharia do ecossistema” pode ser
utilizado para descrever as atividades de uma grande variedade de organismos que
realizam atividades que fisicamente criam, modificam ou mantêm habitats, mesmo
aqueles que não são influentes o bastante para serem considerados engenheiros
do ecossistema (Wilby, 2002).
Engenheiros
do Ecossistema Alogênicos e Autogênicos
Jones
et al. (1994) distinguiu entre dois diferentes tipos de engenheiros do
ecossistema físico:
1.
Os engenheiros alogênicos "modificam o ambiente ao transformarem
materiais viventes ou não-viventes de um estado físico para outro através de
meios mecânicos ou outros".
2.
Os engenheiros autogênicos "modificam o ambiente através de suas
próprias estruturas físicas, isto é, seus tecidos vivos e mortos". À
medida que crescem e aumentam em tamanho, seus tecidos vivos e mortos criam
habitats sobre ou dentro dos quais outros organismos podem viver.
Agora
iremos analisar exemplos desses dois tipos de engenheiros do ecossistema e seus
efeitos sobre a abundância e distribuição de outras espécies.
Exemplos
de Engenharia Alogênica
O
castor (Castor fiber e Castor canadensis) é um importante
engenheiro alogênico do hemisfério norte. Ele transforma árvores vivas em árvores
mortas ao cortá-las e utilizá-las para represar cursos de água, criando
lagos. A engenharia do castor altera a distribuição e abundância de muitos
organismos diferentes, incluindo pássaros, répteis, anfíbios, plantas,
insetos, além de aumentar a biodiversidade na escala da paisagem (Wright et
al., 2002). Para obter mais detalhes, consulte nossos artigos (publicados em
inglês): Beaver and Birds,
Beaver and
Reptiles, Beaver and Amphibians,
Beaver and Invertebrates,
Beaver and
Trees,
Ecology of
the Beaver.
O
porco-espinho (Hystrix indica) escava o solo em busca de alimento (raízes
e tubérculos) e, portanto, abre covas que perduram por décadas. Sementes, água
e outros materiais orgânicos acumulam-se nessas covas e criam micro-habitats
que têm aumentado a abundância e a diversidade de plantas (Alkon, 1999; Wilby
et al., 2001). Por exemplo, Boeken et al. (1995) constataram que a biomassa, a
densidade e a riqueza de espécies de plantas foram mais elevadas nos buracos
cavados pelos porcos-espinhos do que nas áreas de controle próximas com solo não
alterado.
As
lagartas construtoras constroem abrigos utilizando rolos, amarrações, dobras e
tendas de folhas (Lill e Marquis, 2003). Esses novos micro-habitats (abrigos de
folhas) são utilizados simultânea e subseqüentemente por muitos outros artrópodes.
Um estudo de lagartas que constroem abrigos em árvores jovens de carvalho
americano (Quercus alba) constatou que os abrigos de folhas aumentaram a
biodiversidade dos artrópodes em toda a planta (Lill e Marquis, 2003).
As
formigas colheitadeiras (Messor ebeninus) constroem montes de terra para
abrigar suas colônias. Na maioria dos casos, a incidência e abundância da espécie
de planta é mais elevada nesses ninhos em montes de terra da formiga
colheitadeira do que no solo não alterado (Wilby et al., 2001).
Na
África, manadas de gado doméstico e ungulados selvagens ajudam os vetores do
mosquito da malária humana a crescerem em abundância, pois criam
micro-habitats físicos onde eles se reproduzem. A engenharia ocorre quando os
ungulados selvagens e o gado visitam poços de água, onde deixam uma profusão
de marcas de casco grandes e fundas no solo úmido. Essas marcas de cascos são
preenchidas por água da chuva ou por infiltração e são rapidamente
colonizadas por Anopheles arabiensis e Anopheles gambiae,
mosquitos da malária que se reproduzem em poços de água temporários e
inconstantes. Peters (1992) mostrou uma foto dessas pegadas de cascos em um
local próximo a uma vila infectada pela malária em Mali, onde ambas as espécies
de mosquitos foram coletadas.
Quando os
pica-paus e outros pássaros escavam buracos para seus ninhos, criam moradas não
somente para si, mas para muitos outros animais. Por exemplo, na Espanha, o
abelharuco comum (Merops apiaster) faz covas profundas para ninhos no
solo e em penhascos verticais, os quais são subseqüentemente utilizados para a
reprodução de pelo menos outras doze espécies de pássaros após o abelharuco
tê-los abandonado (Casas-Crivillé e Valera, 2005). Ao fazer uma cova, estima-se
que cada par de abelharuco remova 13 Kg de solo. Uma vez que o abelharuco
constrói ninhos em colônias, as escavações conjuntas de vários casais resultam
na redistribuição de grandes quantidades de solo e numa aceleração de processos
geológicos como a erosão do solo e desbarrancamentos (Casas-Crivillé e Valera,
2005).
Exemplos
de Engenharia Autogênica
Árvores,
corais e algas gigantes são bons exemplos de engenheiros autogênicos. À
medida que crescem e aumentam de tamanho, seus tecidos vivos e mortos criam
habitats onde outros organismos poderão viver.
Quando
plantas crescem sobre troncos ou galhos de árvores, em vez do solo, elas são
chamadas de epífitas. Nos trópicos, os epífitos são especialmente
comuns, chegando a representar até 25% de todas as espécies de plantas
vasculares (Nieder et al., 2001). Uma pesquisa com 118 indivíduos da paxiúba (Socratea
exorrhiza) no Panamá constatou 701 epífitos vasculares de 66 espécies
(Zotz e Vollrath, 2003). Os epífitos e os animais a eles associados formam
comunidades singulares nas copas das árvores nos trópicos, as quais são possíveis
pela engenharia autogênica das árvores que criam os habitats (troncos e galhos
de árvores) onde eles podem viver.
Os
epífitos e as comunidades das copas também são encontrados em florestas
temperadas. Por exemplo, a sequóia-sempre-verde
(Sequoia sempervirens), uma árvore gigantesca que cresce ao longo da costa da Califórnia e Oregon, nos
Estados Unidos, geralmente proporciona suporte a significativas comunidades de
epífitos porque o imenso tamanho e altura dessas árvores as tornam excelentes
estruturas sobre as quais outras plantas podem crescer. Os
epífitos que crescem nas altas copas das sequóias-sempre-verdes incluem várias
espécies de árvores de folhas largas, arbustos e samambaias (Sillett e Van
Pelt, 2000). Um loureiro da Califórnia (Umbellularia californica [Lauraceae])
encontrado crescendo na copa de uma sequóia-sempre-verde é a mais alta árvore
epifítica do mundo, crescendo em um olho do nó da sequóia-sempre-verde
localizado 98,3 metros acima do solo (Sillett e Van Pelt, 2000). Muitos animais
também fazem sua morada dentro ou sobre essas árvores (para obter mais
detalhes sobre as plantas e animais que vivem na sequóia-sempre-verde, consulte
nosso artigo:
Ecology of the Coast Redwood [publicado em inglês]).
As
lianas (trepadeiras lenhosas) também são
engenheiros autogênicos. Por exemplo, quando crescem nos dosséis da floresta,
conectam árvores, formando caminhos arbóreos utilizados na movimentação de
macacos e outros animais das copas sem a necessidade de descerem até o chão
(Charles-Dominique 1971; Charles-Dominique et al. 1981). Veja a
Foto 1.
A
produção de conchas por moluscos é outro exemplo de engenharia autogênica
(Gutiérrez et al., 2003). Em habitats aquáticos, “as conchas de moluscos são
estruturas abundantes, persistentes e ubíquas” utilizadas por outros
organismos para anexação e refúgio contra o "estresse de predação, físico
ou fisiológico” e para “controlar o transporte de solutos e partículas no
ambiente bêntico”(Gutiérrez et al., 2003)."
Engenheiros
do Ecossistema e Biodiversidade
Ao
criar, modificar e manter habitats, os engenheiros do ecossistema perturbam o
ambiente natural, o que geralmente causa o aumento da abundância de algumas espécies
e a redução de outras. Apenas dentro da área (talhão) onde a engenharia
ocorre, a biodiversidade pode aumentar ou diminuir, dependendo de quais mudanças
ocorreram. Entretanto, se observarmos os efeitos da engenharia em uma escala
espacial mais ampla (isto é, a escala da paisagem), uma visão que inclui não
apenas o talhão do habitat que sofreu engenharia, mas também os habitats nos
arredores que não a sofreram, veremos que a engenharia do ecossistema torna a
paisagem ecológica mais heterogênea.
Uma
pergunta importante é “Será que a engenharia do ecossistema resulta em uma
maior biodiversidade na escala da paisagem?”. Na região de Adirondack em Nova
York, Wright et al. (2002) constataram que a engenharia do castor aumentou a
riqueza de espécies (uma medida de biodiversidade) de plantas na escala da
paisagem, porém esses pesquisadores concluíram que nem todos os engenheiros
exerceriam tal efeito. Tomando-se a pesquisa do castor como base, eles
propuseram que duas exigências deveriam ser atendidas para que os engenheiros
do ecossistema aumentassem a riqueza na escala de paisagem: (1) “um engenheiro
deve criar um talhão com uma combinação de condições não presentes em
outros locais na paisagem”, e (2) “deve haver espécies que vivem nos talhões
que sofreram engenharia que não estejam presentes nos talhões não modificados
pelo engenheiro". Além disso, os talhões que sofreram engenharia não
devem dominar a paisagem e se tornar tão numerosos que os talhões não
afetados pela engenharia fiquem muito pequenos ou escassos para suportar a
totalidade das espécies (Wright et al., 2002).
Obviamente,
pode haver exceções. Por exemplo, se uma espécie for encontrada nos talhões
que sofreram engenharia ou não, porém se o talhão que não sofreu engenharia
for um habitat de alta mortalidade, onde a reprodução geralmente fracassa, as
espécies podem depender do habitat que sofreu engenharia para sobreviver
(Wright et al., 2002).
Conclusão
Nesse
artigo, concentramos nossa atenção unicamente nos engenheiros do ecossistema e
em suas atividades de engenharia. Este foco foi necessário porque a engenharia
do ecossistema é um fator ecológico importante. Entretanto, vale lembrar que a
maioria dos engenheiros do ecossistema influencia a distribuição e a abundância
de outros organismos de várias maneiras, não apenas pela engenharia. Um bom
exemplo pode ser visto pelas formigas que constroem montes do grupo de espécies
Formica rufa na Europa, e as várias maneiras como elas afetam outras espécies
de animais. Quando essas formigas constroem seus ninhos em montes (engenharia
alogênica), criam novos micro-habitats que aumentam grandemente a abundância
de minhocas que vivem no lixo (Laakso e Setala, 1997). Quando essas formigas
atacam pássaros canores nas árvores próximas a seus ninhos em montes, elas
estão empregando o comportamento de defesa territorial (competição de
interferência) para afugentar os pássaros (Haemig, 1996, 1999). Por fim,
quando elas atacam outros invertebrados, causando uma diminuição das populações
de artrópodes dentro do território da formiga da madeira, uma interação trófica
está ocorrendo (Skinner e Whittaker, 1981; Haemig, 1994). Portanto, essas
formigas alteram a abundância e a distribuição de várias espécies de
animais diferentes utilizando uma série de mecanismos, um dos quais é a
"engenharia do ecossistema".
Referências
Alkon PU (1999) Microhabitat to landscape impacts: crested
porcupine digs in the Negev desert highlands. Journal of Arid
Environments 41: 183-202
Boeken B, Shachak M, Gutterman Y, Brand S (1995) Patchiness
and disturbance: plant community responses to porcupine diggings in the
central Negev. Ecography 18: 410-422
Casas-Crivillé
A, Valera F (2005) The European bee-eater (Merops apiaster)
as an ecosystem engineer in arid environments. Journal of Arid
Environments 60: 227-238
Charles-Dominique P (1971) Eco-éthologie des Prosimiens du
Gabon. Biol Gabonica 7: 121-228
Charles-Dominique P, Atramentowicz M, Charles-Dominique M, Gérard H,
Hladik A, Hladik CM, Prévost F (1981) Les mammifères
frugivores arboricoles nocturnes d'une forêt guyanaise: interrelations
plantes-animaux. Rev Ecol (Terre Vie) 35: 341-435
Gutiérrez JL, Jones CG, Strayer DL, Iribarne OO (2003)
Mollusks as ecosystem engineers: the role of shell production in aquatic
habitats. Oikos 101: 79-90
Haemig PD (1994) Effects of ants on the foraging of birds in
spruce trees. Oecologia 97: 35-40
Haemig PD (1996) Interference from ants alters foraging
ecology of great tits. Behavioral Ecology and Sociobiology
38: 25-29
Haemig PD (1999) Predation risk alters interactions among
species: competition and facilitation between ants and nesting birds in a
boreal forest. Ecology Letters 2: 178-184
Jones CG, Lawton JH, Shachak M (1994) Organisms as ecosystem
engineers. Oikos 69: 373-386
Jones CG, Lawton JH, Shachak M (1997) Positive and negative
effects of organisms as physical ecosystem engineers. Ecology
78: 1946-1957
Laakso J, Setala H (1997) Nest mounds of red wood ants (Formica
aquilonia): hot spots for litter-dwelling earthworms.
Oecologia 111: 565-569
Lill JT, Marquis RJ (2003) Ecosystem engineering by
caterpillars increases insect herbivore diversity on white oak.
Ecology 84: 682-690
Nieder J, Prosperi J, Michaloud G (2001) Epiphytes and their
contribution to canopy diversity. Plant Ecology 153: 51-63
Peters W (1992)
A Colour Atlas of Arthropods in Clinical Medicine.
Wolfe Publishing, London
Reichman OJ, Seabloom EW (2002a) The role of pocket gophers as
subterranean ecosystem engineers. Trends in Ecology and Evolution
17: 44-49
Reichman OJ, Seabloom EW (2002b) Ecosystem engineering: a
trivialized concept? Response from Reichman and Seabloom. Trends
in Ecology and Evolution 17: 308
Sillett SC, Van Pelt R (2000) A redwood tree whose crown is a
forest canopy. Northwest Science 74: 34-43
Skinner GJ, Whittaker JB (1981) An experimental investigation
of inter-relationships between the wood-ant (Formica rufa) and some
tree-canopy herbivores. Journal of Animal Ecology 50: 313-326
Wilby A (2002) Ecosystem engineering: a trivialized concept?
Trends in Ecology and Evolution 17: 307
Wilby A, Shachak M, Boeken B (2001) Integration of ecosystem
engineering and trophic effects of herbivores. Oikos 92:
436-444.
Wright JP, Jones CG, Flecker AS (2002) An ecosystem engineer,
the beaver, increases species richness at the landscape scale.
Oecologia 132: 96-101
Zotz G, Vollrath B (2003) The epiphyte vegetation of the palm
Socratea exorrhiza - correlations with tree size, tree age and
bryophyte cover. Journal of Tropical Ecology 19: 81-90
Informações
sobre esse Artigo
Esse
artigo
também
está disponível nas seguintes línguas:
espanhol
inglês
Autor:
Dr. Paul D. Haemig (PhD em Ecologia Animal) - Ecology Online Sweden.
Fotografia: Os pica-paus são famosos engenheiros do ecossistema porque escavam
buracos em árvores e, portanto, criam moradas para outros animais.
Foto de Richard Ditch (USA).
A
citação adequada é:
Haemig
PD 2011
Engenheiros do Ecossistema: Organismos que
Criam, Modificam e Mantêm Habitats. ECOLOGIA.INFO #12
Caso
você tenha conhecimento sobre publicações científicas importantes que foram
omitidas nesse artigo ou queira dar sugestões para melhorá-lo, entre em
contato com o autor por e-mail:
director {at}
ecology.info
©
Copyright 2003-2011
Ecology Online Sweden. Todos
os direitos reservados.
|