Haemig PD  (2011)  A Barreira Amazônica.  ECOLOGIA.INFO 29

A Barreira Amazônica

Nota. Esse artigo online é continuamente atualizado e revisado logo que resultados de novas pesquisas científicas tornam-se disponíveis. Portanto, apresenta as últimas informações sobre os tópicos abordados.

As chuvas torrenciais que caem nas montanhas e florestas ao norte da América do Sul levam lama e outros sedimentos para os cursos d'água próximos. Esses riachos por sua vez afluem para os rios que serpenteiam vagarosamente atravessando o continente até depositarem sua água doce e sedimentos no mar.

Os dois maiores rios que banham a América do Sul, o Amazonas e o Orinoco, são o primeiro e o terceiro maiores rios do mundo em volume de água. Juntos, representam 19,5% de toda a vazão de água doce da Terra (Degens et al., 1991). Por uma convergência notável, esses dois rios, bem como alguns cursos d'água costeiros menores, depositam enormes volumes de água doce e lama no Oceano Atlântico dentro de uma área relativamente pequena ao longo da costa nordeste da América do Sul. Em nenhuma outra parte do mundo um ambiente marinho recebe tanta água doce e sedimentos como nas águas costeiras dessa região. Do delta do Orinoco, na Venezuela, a Fortaleza, no Brasil, a lama dos rios recobre o fundo da plataforma continental e a água do mar caracteriza-se pela grande redução de salinidade e maior turbidez.

Essas condições extremamente alteradas das águas costeiras impedem a sobrevivência de alguns organismos marinhos ou sua dispersão nessa área. Assim, acredita-se que o enorme volume de água doce e silte depositado nessa região pelos grandes rios formem uma barreira no oceano, separando a biota marinha dessa faixa litorânea leste brasileira da biota da costa da Venezuela. Os ecologistas dão a essa barreira o nome de Barreira Amazônica porque, embora o Amazonas seja apenas um dos muitos rios que afluem para o mar nessa região, ele contribui com mais água doce e sedimentos que os outros rios.

A Barreira Amazônica, contudo, é muito mais que apenas um impedimento à dispersão. É também um mecanismo que aumenta e preserva a biodiversidade regional. Ao impedir que algumas espécies caribenhas se expandir para a costa leste do Brasil e vice-versa, os conespecíficos dessas duas áreas ficam isolados e, com o tempo, divergem e evoluem em novas espécies.

A barreira também permite que a costa caribenha e a costa leste do Brasil ofereçam abrigo a táxons menos aptos que normalmente seriam substituídos ou eliminados pelas táxons superiores da outra área. Por exemplo, o Turbinella laevigata, um grande gastrópode de 15 centímetros encontrado somente na orla tropical brasileira, a sudeste da Barreira Amazônica, é remanescente de uma linhagem antes mais comumente encontrada em muitas outras áreas a oeste do Atlântico, inclusive na Flórida, mas que desapareceu nas outras regiões, com exceção do Brasil (Vokes, 1964; Vermeij, 1978).

Neste artigo, vamos discutir detalhadamente a natureza e a extensão da Barreira Amazônica e dar exemplos dos seus efeitos na distribuição de espécies e biodiversidade regionais.

Características da Barreira Amazônica

Para compreender a Barreira Amazônica, é preciso primeiramente compreender a imensidão do maior rio que traz água doce e lama para essa região. O rio Amazonas despeja no mar quatro vezes mais água doce que o Congo, o segundo maior rio do mundo, e mais de 14 vezes o volume de todo o sistema fluvial formado pelo Mississipi, Missouri e Ohio na América do Norte (Degens et al., 1991). Com mais de 1.000 tributários, sete dos quais com mais de 1.600 quilômetros de extensão, o Amazonas banha 4.690.000 quilômetros quadrados (Degens et al., 1991), uma área equivalente a um terço do continente sul-americano (Depetris e Paolini, 1991).

Todos os anos, o Amazonas lança 5.780 km3 de água doce no Oceano Atlântico (Degens et al., 1991). Esse volume representa aproximadamente um sexto (16,4%) da vazão total de água doce da Terra (Degens et al., 1991). Ao contrário de outros rios do mundo, a taxa de água doce que o Amazonas lança no oceano é relativamente uniforme o ano todo, com apenas uma pequena diferença entre a vazão máxima e a mínima (Richey et al., 1991).

Também ao contrário dos outros grandes rios, o Amazonas não possui um delta. O fluxo do seu enorme volume é tão forte que apenas uma pequena quantidade de sedimentos que carrega é depositada na foz, formando ilhas aluviais temporárias cobertas por manguezais. O restante é arrastado pela corrente para o mar. Conseqüentemente, as ilhas no estuário do Amazonas são, em sua maioria, partes desgarradas do continente que ainda não sofreram a erosão do rio e do mar (Murphy, 1936).

Diariamente, o Amazonas lança de 3 a 3,5 milhões de toneladas métricas de sedimentos finos no Oceano Atlântico (Meade et al., 1985). Isso representa de 1,1 a 1,3 bilhão de toneladas métricas de sedimentos por ano, uma quantidade incrível (Meade et al., 1985). A maior parte dos sedimentos é depositada na plataforma continental, mas cerca de 20% são levados para oeste pela Corrente das Guianas ao longo da costa norte da América do Sul como "aproximadamente 150 milhões de toneladas em suspensão e 100 milhões de toneladas depositadas em bancos de lama migrantes (Wells e Coleman, 1978; Eisma et al., 1991; Augustinus, 2004; Froidefond, 2004).

Allison e Lee (2004) referem-se a esses maciços bancos de lama em movimento e aos sedimentos suspensos como "correntes de lama". A lama não apenas recobre a plataforma continental nessa parte mas também as praias, formando a mais longa linha costeira de lama (1.600 km), com extensos manguezais apesar da relativamente alta atividade das ondas e das marés. "Ao contrário de muitas áreas onde os manguezais estão limitados a proteger ambientes costeiros (Thom, 1982), o comportamento de amortecimento das ondas vindas de depósitos de lama mal consolidados ao largo da costa permite a colonização de manguezais na faixa litorânea e no interior do continente, ao longo da foz dos rios e avançando até limites estuarinos (Allison e Lee, 2004)."

Esses bancos de lama oferecem perigo tanto ao homem quanto aos organismos marinhos que habitam os fundos rochosos. Isso faz lembrar, por exemplo, como Sylvain, amigo de Henri Charrière, ficou preso e se afogou nessa lama numa praia na Guiana Francesa, quando esses detentos empreenderam sua épica fuga da colônia penal da Ilha do Diabo (Charrière, 1970).

A vazão do rio Orinoco também contribui significativamente para a Barreira Amazônica. Embora muito menor que o gigante Amazonas, o Orinoco é em si um rio realmente impressionante. Sua vazão anual de água doce (1.100 km3) é, como dissemos acima, a terceira mais alta do mundo, abaixo somente do Amazonas e do Congo (Degens et al., 1991).

Considerações Teóricas

Há muitos táxons cuja dispersão e distribuição são aparentemente limitados pela Barreira Amazônica. Estão incluídas aqui algumas espécies de corais que dependem de luz, peixes de recife de águas rasas, gastrópodes com habitat nas costas rochosas e uma espécie de ave marinha.

No entanto, antes de examinar algumas dessas espécies mais detalhadamente, devemos mencionar que a maioria das espécies de organismos marinhos não é limitada pela Barreira Amazônica e ocorre tanto a leste como a oeste da barreira. Essas espécies se dispersaram através da barreira, ou a evitaram, desviando-se por cima ou ao redor dela.

Um exemplo é o manati-da-índia-ocidental (Trichechus manatus), que é encontrado no Caribe e, até ser recentemente caçado pelo homem, também era encontrado ao longo da costa leste do Brasil, avançando até o Espírito Santo. Explica-se a falha da Barreira Amazônica em limitar a distribuição desse mamífero marinho pelo fato de que essa espécie habita tanto a água doce como a água salgada, cruzando rapidamente o espaço de água em direção às ilhas. Ele se dispersa através da barreira ou nada em torno dela.

Outro exemplo vem das aves marinhas. Todas as espécies de aves marinhas, com exceção de uma (abordada abaixo), ocorrem nos dois lados da Barreira Amazônica. O maciço volume de água doce e sedimentos depositados pelos rios Amazonas e Orinoco não impediram sua dispersão. As aves voaram por cima da barreira ou à sua volta.

A Barreira Amazônica tampouco impede a sobrevivência de muitos moluscos que usam camuflagem como proteção na zona entre-marés, bem como animais associados a manguezais e espécies de corais adaptadas a regiões de sombra (Vermeij, 1978). Muitas dessas espécies conseguem viver nessas condições ambientais singulares e para elas, portanto, a barreira absolutamente não é um impedimento, mas sim uma avenida de dispersão.

Se uma espécie marinha ocorre no Caribe ou na orla litorânea leste do Brasil, mas não nas duas áreas, seria o fato uma prova de que a Barreira Amazônica a impediu de se colonizar na outra área? A resposta é não. É possível que o organismo tenha se dispersado através, em torno ou por cima da barreira em números suficientes para a colonização, não se estabelecendo contudo na segunda área por força de alguns fatores ambientais desfavoráveis nessa outra área ou por terem sido eliminados por algum inimigo.

Para provar que a Barreira Amazônica age como barreira, é preciso realizar experimentos em campo, introduzindo uma espécie endêmica de uma área na segunda área. No entanto, essa não seria uma experiência ética pois arriscaria introduzir uma nova espécie em outra área por intervenção humana. Experiências anteriores mostram que as comunidades naturais e as economias humanas podem ser fortemente prejudicadas pela introdução de espécies estranhas. Portanto, devemos tentar estudar a Barreira Amazônica sem recorrer a experimentos em campo.

A água doce e o silte da Barreira Amazônica são encontrados somente nas águas costeiras. Portanto, um forte argumento de que a Barreira Amazônica atua realmente como uma barreira, é o fato de serem principalmente as espécies de organismos marinhos restritos à costa que parecem sofrer esse impedimento.

Os outros organismos marinhos costeiros que conseguem sobreviver mais afastados do continente, por exemplo nas águas rasas de ilhas oceânicas e atóis, são encontrados no Caribe e na costa leste do Brasil. Essas espécies não afetadas aparentemente circundam a Barreira Amazônica "pulando de ilha em ilha" ao redor dela. Por exemplo, os Recifes Manoel Luís, localizados a 180 quilômetros ao norte de São Luís, no estado do Maranhão, Brasil, estão suficientemente afastados da costa e, portanto, recebem a água limpa e salina da Corrente Equatorial que flui para oeste, e parecem funcionar como uma importante escada entre o Caribe e a costa leste do Brasil para as espécies marinhas cujo habitat não se limita à costa (Collette e Rutzler, 1977; Moura et al., 1999).

Examinemos agora em detalhe as espécies marinhas cuja distribuição parece estar limitada pela Barreira Amazônica.

Pelicano-Pardo

Ao longo da Costa Atlântica da América do Norte, o pelicano-pardo (Pelecanus occidentalis) se reproduz em direção ao norte até a Carolina do Norte, Estados Unidos (35ºN). No entanto, na Costa Atlântica da América do Sul, a ave se reproduz só até a Venezuela (9oN), onde uma numerosa população (17.500 indivíduos em 1983) vive logo a oeste da Barreira Amazônica (Guzman e Schreiber, 1987). Os pelicanos-pardos errantes (geralmente imaturos) são por vezes vistos a leste e ao sul desse ponto, até o Rio de Janeiro, mas não se encontram colônias reprodutoras nessa região, embora toda a costa brasileira, ao sul e a leste da Barreira Amazônica, aparentemente seja o habitat ideal para essa espécie (Mitchell, 1957; Sick, 1993). Talvez seja porque muito poucos pelicanos consigam chegar até a costa tropical sul do Brasil para aí estabelecer colônias reprodutoras, ou porque a preferência desses pássaros em termos de colonização seja tal que decidam não ficar e se reproduzir nesses locais. Vamos nos deter mais atentamente no caso desse pelicano.

O pelicano-pardo se alimenta principalmente de peixes. Busca alimento nas águas marinhas costeiras, raramente se aventurando ao largo da costa. De fato, em censos de aves marinhas em águas ao largo da costa oeste da América Central e do México, descobriu-se que os pelicanos-pardos, entre todas as demais espécies de aves marinhas, eram os que ficavam mais próximos da costa (Jehl, 1974). Especificamente, os pelicanos-pardos nunca foram vistos a mais de 1.600 metros da costa, ao passo que os atobás-mascarados (Sula dactylatra) e os atobás-de-pé-vermelho (Sula sula) eram "razoavelmente comuns a distâncias além de 16 quilômetros da costa", os atobás-pardos (Sula leucogaster) às vezes eram vistos a "mais de 32 quilômetros da costa", os tesourões-magníficos (Fregata magnificens) a até 8 quilômetros da praia e os rabos-de-palha-de-bico-vermelho (Phaethon aethereus) a até 16 quilômetros da praia (Jehl, 1974).

Murphy (1936) levantou a hipótese de que as águas barrentas da Barreira Amazônica desmotivaram o pelicano-pardo de estender sua distribuição reprodutora para o sudeste, para o "paraíso de águas azuis ao longo da costa tropical sul do Brasil". Ele sugeriu que as águas turvas da barreira não mantinham “cardumes em números suficientes para sustentar uma população de pelicanos”, ou então a água era "quase tão opaca que os pelicano não conseguiam enxergar e capturar sua presa."

Murphy observou ainda que os atobás-mascarados, os atobás-de-pé-vermelho, os atobás-pardos e os tesourões-magníficos eram raros nas costas das Guianas e do Amapá, no coração da Barreira Amazônica. Contudo, ao contrário do pelicano pardo, essas quatro espécies haviam todas de alguma forma cruzado ou contornado a barreira Amazônica para se reproduzir no Caribe e ao longo da costa leste do Brasil tropical. Murphy argumentou que esses atobás e tesourões não eram limitados pela barreira Amazônica porque não estavam circunscritos à costa como o pelicano-pardo. Eles poderiam circundar a barreira amazônica porque tinham “inclinações menos pronunciadas contra sair das áreas imediatamente próximas à costa”. Os dados citados acima, extraídos de censos de aves marinhas da costa da América Central e do México, apóiam a contenda de Murphy de que essas outras aves marinhas não são tão ligadas à costa quanto o pelicano-pardo.

Para muitos pelicanos-pardos individualmente, o rio Amazonas também pode funcionar como um labirinto que os confunde e desorienta a ponto de nunca encontrarem a costa sul do Brasil. Helmut Sick (1993) relata que os pelicanos-pardos errantes podem ser visto a uma boa distância rio Amazonas acima e em alguns de seus tributários, como o rio Tapajós e o rio Branco. Imaginem a percepção que os pelicanos-pardos errantes devem ter do seu ambiente ao voar para o sul, ao longo da costa, partindo da Venezuela. Como preferem permanecer na faixa costeira, as aves seguem essa linha até alcançar o estuário do Amazonas. Como o estuário tem muitos quilômetros de largura nesse ponto, os pelicanos simplesmente usam seu instinto e, em vez de cruzar a ampla faixa de água do estuário, voam em direção ao norte do rio Amazonas como se fosse a costa. Quando os pelicanos entram no vasto labirinto das águas da bacia do Amazonas, eles podem se perder ou ficar curiosos, vagando por grandes distâncias antes de voltar para o Atlântico.

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A foto no alto da página mostra dois pelicanos-pardos e foi tirada por Linda M. Bell, da Estados Unidos da América.

 

 

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